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Após 'boom' do consumo, é hora de poupar

Os dados do Censo Demográfico 2010 divulgados nesta sexta-feira pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sancionam uma conquista do país que outros indicadores já vinham apontando: o forte processo de aumento da renda e do consumo das classes mais baixas. A pujança da economia, associada a políticas públicas como os reajustes acima da inflação do salário mínimo e a ampliação dos programas de transferência de renda, permitiu a elevação do rendimento das famílias, especialmente da fatia mais pobre. Outro fator fundamental é derivado da própria estabilização: o desenvolvimento do mercado de crédito. Analistas ouvidos pelo site de VEJA são unânimes em afirmar que minimizar a exclusão de milhões de brasileiros do acesso ao consumo era medida urgente e necessária. Porém, será isso suficiente para pavimentar o caminho que o país deve trilhar rumo a uma condição melhor no cenário global? A resposta é não. É preciso repensar a estratégia de desenvolvimento do Brasil, de modo a reforçar políticas que permitam a ampliação da poupança doméstica. Entende-se por este conceito algo semelhante ao que se aplica a um orçamento de uma casa: a capacidade de acumular recursos próprios no decorrer dos anos, graças a um esforço de gerar mais riqueza do que de consumi-la. O esforço deve ser global – de famílias, empresas e, sobretudo, do governo, cuja gastança chega a ser vergonhosa. O Palácio do Planalto, por ora, só pensa em continuar a estimular o consumo.
Com exceção da perda de participação do rádio, houve aumento significativo da proporção de domicílios com acesso a bens duráveis nos períodos investigados pelo Censo (2000 e 2010). Cabe ressaltar, por exemplo, a ampliação da presença de máquinas de lavar roupa nas residências, que passou de 32,9% do total para 47,3% na referida década. Microcomputadores com acesso a internet, por exemplo, eram inexistentes nas moradias e alcançaram impressionantes 30% dois anos atrás. A presença de motocicletas para uso particular, também contabilizada pela primeira vez em um Censo Demográfico, foi de 19,5%.
 
Política para o consumo – A estratégia dos governos nos últimos anos tem sido pautada – e é bem-sucedida – em ampliar o acesso das famílias ao consumo. De posse da estabilização dos preços que lhes foi entregue pelo governo anterior, e que foi felizmente preservada, a gestão petista na Presidência da República ocupou-se em reduzir a pobreza. Para isso lançou mão de expressiva ampliação dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Hoje, estima-se que um quarto da população brasileira é favorecido direta ou indiretamente por um programa deste tipo. Além disso, o ex-presidente Lula e a presidente Dilma concederam aumentos do salário mínimo reais, isto é, acima da inflação. O efeito destas políticas, associado ao reflexo do próprio crescimento do PIB na década, foi captado pelo Censo de 2010. O levantamento também evidenciou a expansão do nível de emprego, a melhoria na renda, a emergência da nova classe média e a elevação do padrão de consumo das classes D e E.
Esta “nova” riqueza ainda não se traduziu, contudo, em folga financeira no fim do mês – principalmente para as camadas mais pobres da população. É que o brasileiro continua a destinar quase todo seu rendimento com gastos do dia-a-dia. Outro estudo do IBGE, a POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) relativa a 2008/2009, mostra isso. As despesas cotidianas, inclusive com compras em lojas e supermercados, abocanham 92,1% da renda média domiciliar nacional. Uma parcela pequena, de 2,1%, é direcionada a quitar dívidas. Para o aumento da poupança, sobram apenas 5,8%.
 
Crédito vigoroso – O endividamento, aliás, virou fator relevante nos últimos anos a dificultar um acúmulo mais vigoroso de riqueza por parte das famílias. Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio, o porcentual médio de famílias endividadas em 2011 foi 62,2%, ante 59,1% em 2010. A elevação do indicador é explicada, em parte, pelo próprio acesso a linhas de financiamento. Nos últimos cinco anos, 32 milhões de pessoas tiveram acesso a crédito na primeira vez na vida segundo dados compilados pela Boavista Serviços com base nos dados do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC). Para Fernando Cosenza, diretor da empresa, uma pequena poupança já seria suficiente para mitigar casos de inadimplência. “A maioria dos casos de consumidores que ganham até três salários mínimos e que se tornam inadimplentes poderia ser evitada se conseguissem ter um pequena poupança”, afirma.
Ainda que os analistas descartem o risco de uma eventual explosão dos calotes, graças à combinação de economia ainda favorável e juros em queda, a verdade é que acumular recursos para o futuro equivale a uma realidade distante do cidadão comum. Para o economista-chefe da gestora de recursos M.Safra, Marcelo Fonseca, este quadro tem de ser repensado para que o Brasil consiga caminhar para “o primeiro time”. “É verdade que, se almejamos nos transformar numa nação com maior PIB potencial, será necessário poupar mais. O que vale para uma família ou uma empresa vale também para o país”, pondera.
 
Poupar é preciso – A história das nações que, ao longo do século XX, superaram a condição de pobreza e melhoraram de patamar é rica em exemplos. Expandir a poupança doméstica reflete-se na elevação do investimento e na melhoria das taxas de produtividade. O raciocínio é simples: maior disponibilidade de poupança permite melhores condições de financiamento à atividade produtiva, além de segurança nos momentos de crise, quando linhas de crédito externas costumam ‘secar’. Empresas, mas também famílias, conseguem assim financiar mais facilmente sua própria ascensão. “Se o Brasil quer renda no futuro, será necessário poupar mais hoje. O consumo não tem de cair, mas sim dar espaço para poupança e investimento”, afirma.

Aposta contrária – O governo Dilma, contudo, parece ignorar a importância dessa temática. Ante o risco de 2012 fechar com uma pequena expansão do PIB, o Palácio do Planalto tem anunciado uma série de medidas para, uma vez mais, estimular a demanda das famílias. As principais foram aquelas incorporadas ao Plano Brasil Maior 2 e, mais recentemente, a pressão para que os bancos públicos reduzissem os juros dos financiamentos para pessoas físicas e pequenas empresas.
Para Fonseca, é preciso ainda ampliar o debate sobre o tamanho da rede de proteção social que hoje se estende aos brasileiros. “Será necessário caminhar para uma situação em que essas pessoas sejam inteiramente absorvidas pelo mercado de trabalho. Ficaria para elas tomar a decisão de consumo ou poupança. As pessoas precisam caminhar com as próprias pernas”, conclui.
 
Gasto público – O ajuste do gasto público é fator crucial para permitir a ampliação da poupança interna. Ao cobrar uma carga tributária semelhante à de países desenvolvidos, o governo aufere arrecadação gigantesca. Gasta, no entanto, quase tudo com gastos correntes, como pessoal e custeio, e ainda tem déficit. Em resumo, o problema fiscal do Brasil contribui para a "despoupança" das famílias.
A carga tributária elevadíssima – fruto não apenas daqueles tributos diretos, mas também da infinidade de impostos embutidos nos preços de bens e serviços – tira dinheiro das pessoas físicas e jurídicas. A medida não teria nada de injusta se as famílias e empresas não tivessem de arcar depois com funções típicas do estado. Não é novidade para ninguém que famílias pagam um extra para ter educação e saúde de qualidade, ao passo que os empresários têm de colocar rios de dinheiro em infraestrutura, por exemplo. Outro fator a considerar são os juros elevados – também um reflexo do desequilíbrio fiscal – que fazem com que o crédito, em caso de inadimplência, torne-se inadiministrável para alguns.

Sugestões para o futuro – O economista do Itaú BBA, Guilherme de Nóbrega, afirma ter esperança que o próximo Censo, a ser realizado em 2020, mostre um país ainda mais avançado. Na avaliação dele, melhor seria se o próximo estudo revelasse um aumento da capacidade de oferta do Brasil; melhorias na eficiência da economia; e uma presença mais intensiva do investimento privado.
Nóbrega concorda que a atenção com o gasto público é um fator importante, mas destaca também que o Planalto pode contribuir para a construção de um novo país ao atacar outros pontos: fornecer um ambiente com regras estáveis; conferir estímulos ao empreendedorismo; lutar para manter a inflação baixa; preservar o clima de segurança jurídica, etc. “A maneira de fazer política econômica deste governo tem uma preocupação central com o consumo, o que é bom. Mas no Brasil, este caminho já está trilhado. Temos de continuar a avançar agora”, destaca o economista.
Para os analistas ouvidos pelo site de VEJA, o Brasil atualmente se depara com um grande oportunidade para fazer ajustes. Com os preços das commodities em alta, juros muito baixos no mercado internacional e um enorme fluxo de recursos para o país, há acesso facilitado à poupança externa. O financiamento é farto, mas o Poder Executivo está usando esses recursos apenas direcionar ao consumo, além de gastar ‘muita energia’ em tentativas para proteger setores pouco competitivos. O ideal é que estivesse investindo em infraestrutura, novas indústrias, educação e inovação, por exemplo. “Se a gente não mudar esse modelo hoje, seremos futuramente apenas um país que quase chegou lá”, diz Fonseca.
 
Por Veja