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Como reerguer um país após décadas de ditadura

À medida que cresce a pressão sobre Muamar Kadafi na Líbia aumentam também os questionamentos sobre o futuro que espera aquele país - assim como todos os atingidos pela onda de protestos da Primavera Árabe. A própria população se revoltou com seus governantes e, em fortes manifestações, exige a saída deles do poder. Mas depois de três, quatro décadas de ditadura, como essas nações poderão planejar uma eventual transição democrática se nunca tiveram qualquer experiência do tipo e pouco ouviram falar a respeito? Tunísia e Egito foram os primeiros a derrubar seus presidentes, meses atrás, e ainda engatinham rumo ao que pode um dia ser um governo democrático.
Quando um regime ditatorial chega ao fim, é comum ver as desavenças anteriores entre governo e opositores darem lugar a novos conflitos - dessa vez, entre o grupo que pouco antes lutava pelo mesmo objetivo. Na Líbia, por exemplo, as divergências entre tribos, religiões e etnias ameaçam os primeiros passos para a criação de uma democracia: o que inclui uma nova Constituição e a realização de eleições - prometidas para ocorrer dentro de oito meses. “A partir do momento que for sacramentado o fim da era Kadafi, o próprio Conselho Nacional de Transição (CNT) líbio enfrentará conflitos de interesses”, enfatiza Moisés Marques, coordenador do departamento de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina. “A pergunta não é se haverá divisões, mas quais medidas serão tomadas para reparar e controlar essas diferenças”, reitera Wendy Pearlman, especialista em Oriente Médio da Universidade de Northwestern (EUA) e PhD na Universidade de Harvard.


Revolução - Por ser um país sem instituições, partidos nem Exército, a Líbia terá de planejar uma transição desde o início. Há quem diga que esta seria a verdadeira revolução, pelo fato de que o processo não corre o risco de ser influenciado por "vícios" passados - ao contrário de Tunísia e Egito, onde o desafio ainda é consertar instituições já existentes. Mansour El-Kikhia, presidente do departamento de Ciências Políticas da Universidade do Texas e autor do livro Libya’s Gaddafi: The Politics of Contradiction (Kadafi da Líbia: a política da contradição, em tradução livre), ressalta que, nesses dois países, o que moveu as revoltas foi a cleptocracia - literalmente, estado governado por ladrões. "Contudo, os regimes de certa forma continuam os mesmos, assim como a estrutura burocrática, os partidos e as leis que permitiram tais abusos”, explica, lembrando que nem um quarto das reivindicações da população foram atendidas pelos novos governos.
Por outro lado, a total falta de experiência nesse sentido também pode ser problemática. Afinal, qual o ponto de partida? "Ainda que, politicamente, o ideal seja começar do zero - e não partir de uma estrutura já corrompida -, os casos dos países que vivenciaram as revoltas populares são uma grande incógnita", observa Marques. De qualquer forma, o projeto de democracia implantado nessas nações jamais será como conhecemos no Ocidente. No Brasil, por exemplo, já havia uma tradição política enraizada antes da ditadura militar (instaurada entre as décadas de 60 e 80), e o país caminhava para o liberalismo. Assim, com o retorno do processo democrático, ficou mais fácil voltar ao padrão anterior. “Há outros tipos de ‘cultura política’ - normas, valores, comportamentos - que não apontam para o modelo de democracia que a gente conhece. Olhando para Líbia, Tunísia e Egito, não é possível sequer prever uma sucessão presidencial de quatro em quatro anos”, exemplifica Moisés Marques.

Desafios - Para complicar ainda mais, povo líbio também vai precisar lidar com cenários temerosos, como a possibilidade de Kadafi se tornar um "fantasma", personificado na figura de seus aliados. Iludida pelos bons indicadores sociais e econômicos do país (na comparação com o restante do mundo árabe), cerca de 20% da população vê o coronel como um símbolo positivo para o país. Dessa forma, um eventual assassinato dele poderia significar sua "imortalidade" entre esse grupo. “Os rebeldes devem preferir capturar Kadafi para que ele seja julgado por um tribunal internacional, como Hosni Mubarak (Egito) e seus filhos, do que matá-lo", opina Wendy Pearlman. O CNT também deve pensar em como controlar uma possível violência interna causada pelo sentimento de vingança em uma terra que ficou por tanto tempo sem lei. “Depois de meses de guerra civil, há armas por toda a parte na Líbia. Será um desafio para o Conselho restabelecer a segurança para controlar a situação”, alerta o especialista.
Um bom início seria aprender com os erros cometidos pelos Estados Unidos após a invasão do Iraque e a consequente queda de Saddam Hussein, que mergulhou o país em um caos, principalmente político. Será preciso corrigir as falhas do antigo regime e demitir funcionários corruptos. “A insegurança interna deve ser mais perigosa do que o terrorismo como ameaça a outros países”, avalia Pearlman. Por isso, uma ajuda externa, da Otan e da ONU em especial, é necessária. “Sem a intervenção da Otan, não haveria revolução. Sem a ajuda da Otan, Kadafi teria matado metade dos líbios”, salienta Mansour El-Kikhia. Não basta o esforço de países como a França em convencer outras nações a reconhecer a transição. As instituições internacionais precisam assumir um papel firme no governo de coalizão, uma vez que entre as principais lideranças do CNT há desde representantes da Al Qaeda até ex-ministros do ditador. “Será necessário um trabalho diplomático para que as armas se calem, e a democracia comece a falar”, completa Marques. Talvez os rebeldes não cheguem ao cúmulo de uma guerra civil numa era pós-Kadafi - já que toda reconstrução exige um mínimo de unidade -, mas sua (nova) luta certamente será longa e cheia de percalços.

Por Veja