|

A verdadeira herança maldita é a que inclui o naufrágio do sistema de segurança pública

A ocupação por forças da lei do conjunto de favelas do Morro do Alemão não mudou, em sua essência, a realidade medonha: o Rio deste começo de milênio é Medellín no fim do século 20. Pouco importa se aqui nenhuma quadrilha de narcotraficantes ou milícia formada por policiais bandidos exibe, isoladamente, as dimensões alcançadas em seu apogeu pelo Cartel de Medellin — uma das mais aterradoras organizações criminosas da história. Pouco importa se lá havia o Pablo Escobar que aqui não há — ainda. Pouco importa se, em algumas horas, foi invadida e subjugada a fortaleza aparentemente inexpugnável que funcionou anos a fio no coração das trevas.
Somados, os pablos escobares que hoje governam centenas de favelas se transformaram num inimigo muito mais temível e brutal que o mítico chefão colombiano morto nos anos 90. Somados, os microcartéis que controlam os morros cariocas mobilizam um exército fora-da-lei maior e mais letal que o similar de Medellín. Somados, os bunkers fincados pela bandidagem em quase todas as 1.006 favelas do Rio compõem uma fortaleza muito menos vulnerável que a mais moderna edificação militar construída pelas Forças Armadas brasileiras.
A invasão do Morro do Alemão, uma vitória evidente dos homens de bem, deve ser imediatamente reduzida a suas reais dimensões, sobretudo para impedir que as manifestações de otimismo e o clima de otimismo sejam logo substituído pela espécie de frustração que anuncia a rendição definitiva, a capitulação desonrosa. Vistas as coisas como as coisas são, o que ocorreu foi um louvável primeiro passo que, embora singularmente relevante, é sempre e só o primeiro passo. É apenas o início da caminhada extensa, arriscada e penosa.
Ao constatar que a mobilização da polícia estadual seria insuficiente para garantir a ordem pública, e que não dispunha de meios para enfrentar militarmente um inimigo com poder de fogo extraordinariamente superior, o governador do Estado solicitou ao presidente da República o envio de tropas das Forças Armadas. Aprovado pelo chefe de governo, o pedido foi encaminhado aos chefes do Exército e da Marinha, que cuidaram da montagem da operação em parceria com o comando da Polícia Federal e da secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Simples assim. O governador e o presidente agiram corretamente. Mas não fizeram mais que a obrigação.
Pois bastaram as cenas dos delinquentes em fuga, dos blindados arrebentando as pedras no caminho, da gente honesta do morro festejando a passagem das tropas para que ambos emergissem das sombras convenientes fantasiados de napoleão-da-favela. Ficaram ainda mais parecidos com napoleões-de-hospício. Com apenas 13 Unidades de Polícia Pacificadora em funcionamento, o governador atribuiu o desencadeamento da onda de violências ao pavor que incendeia a alma de um traficante quando topa com uma UPP pela proa. Como se não faltassem quase mil unidades do gênero. Como se a mera ocupação militar tivesse transformado o Morro do Alemão numa Avenida Delfim Moreira. Como se Cabral tivesse erradicado pessoalmente a corrupção policial endêmica.
Lula reapareceu caprichando na pose de marechal da vitória. “Eu até já tinha resolvido visitar o Morro do Alemão”, fantasiou depois de conferir se não havia nenhum espião das favelas ouvindo a bravata. “Pois agora é que vou mesmo, para conversar com o povo e cumprimentar os soldados”. Merecia ser presenteado pelos companheiros artistas com o uniforme completo de general da Banda de Ipanema. Pode também acabar aderindo ao interminável carnaval temporão de Nelson Jobim e dar as caras na zona conflagrada de farda branca, esporase e penacho. Com Sérgio Cabral fantasiado de ordenança, a dupla de novo louvará no palanque o segredo do sucesso agora estendido à segurança pública: a perfeita harmoniaentre os governos federal, estadual e municipal.
Seria divertido se não fosse tão irresponsável, leviano e trágico. O governo municipal é só um espectador inerme das terras sem lei. A isso acabará reduzido o governo estadual se insistir na fanfarronice e considerar derrotado o inimigo que só perdeu uma batalha carregada de simbolismo. Os assassinos do Morro do Alemão estão em liberdade e nem lhes passa pela cabeça aposentar-se. E o governo federal é um colecionador de fiascos numa zona de guerra que sempre evitou. Lula vai completando oito anos no poder sem ter sequer esboçado um programa de segurança pública que mereça tal nome.
Os presídios de segurança máxima prometidos em 2003 ou ficaram na discurseira ou parecem hoteis com janelas gradeadas. A Força Nacional de Segurança é uma piada recorrente contada pelo presidente da República e pelo ministro da Justiça da vez. O Executivo nem sequer tentou estender os braços do Estado Democrático de Direito aos morros e a outras zonas de exclusão anexadas às imensidões territoriais dominadas pelo narcotráfico que têm no Rio (e em outras metrópoles) a face visível a olho nu. A face oculta inclui milhares de quilômetros de fronteiras que, desprotegidos, dão passagem às patrulhas de transportadores de drogas que abastecem os batalhões de distribuidores.
“O Rio vai chegar em paz à Olimpíada de 2016″, repetiu o governador Sérgio Cabral. O direito de viver em segurança não é um privilégio decorrente da escolha da sede dos Jogos, nem uma cláusula do contrato com o COI. É um direito bem mais antigo que a Olimpíada. É também uma imposição constitucional. Ganhar a guerra declarada pelos ditadores dos morros é uma urgência nacional não porque 2016 vem aí, mas porque o Rio está para o Brasil como Medellín esteve para a Colômbia. A guerra só será vencida com uma ofensiva ampla, articulada e séria envolvendo os três Poderes e todos os governos.
É preciso reincorporar os territórios amputados pelos bandidos ao mapa real do Brasil. Reincorporá-los já, a qualquer custo e sem palavrório. Os brasileiros sensatos nunca mereceram a conversa fiada, a lengalenga, as molecagens dos xerifes de palanque. Agora a discurseira e a enganação passaram da conta. Tornaram-se tão exasperantes quanto o barulho dos tiros no morro.
Por Augusto Nunes, da Veja