Agentes da ditadura criam rede de arapongas
RIO - A rede de contatos formada pelas anotações do sargento Guilherme Pereira do Rosário em sua agenda de telefones - mostrada em reportagem do GLOBO publicada neste domingo - aponta para o que hoje é a atual comunidade civil de informações. Militares reformados que, após o fim do regime, partiram para empresas particulares de vigilância, segurança, contra-informação, arapongagem. Rosário morreu na explosão da bomba que carregava no colo, na noite de 30 de abril de 1981, no estacionamento do Riocentro.
Como O GLOBO revelou neste domingo, o segundo inquérito aberto sobre o caso, em 1999, apontou a existência da agenda de telefones de Rosário. O GLOBO identificou metade dos 107 nomes anotados na agenda. Entre eles havia integrantes de cinco segmentos: o chamado Grupo Secreto, organização paramilitar de direita que desencadeou atos terroristas para deter a abertura política; nomes da Secretaria estadual de Segurança, incluindo do órgão responsável por investigar justamente os atentados a bomba da época; organizações civis, como empresas de construção e de material elétrico; veículos de comunicação; e militares que formariam depois a atual comunidade civil de informações e arapongagem.
A presença de alguns desses militares entre os contatos de um ativo participante de atividades terroristas de direita como Rosário mostra que, quando veio a distensão, esse grupo preencheu o vazio de poder utilizando, para fins civis, os conhecimentos de inteligência que tinham adquirido. Além disso, a agenda de Rosário traz indicações de que, já na época do fim do regime, essa comunidade de informações já começava a se articular.
Na lista, nomes do grampo do BNDES
Sargento paraquedista com 12 anos de experiência na guerra suja, Guilherme do Rosário pertencia, quando morreu, à Subseção de Operações Especiais, unidade de elite do DOI I, especializada em estouro de "aparelhos subversivos com o uso de força". Porém, à medida que as missões foram encolhendo - em decorrência do aniquilamento das organizações de esquerda da luta armada e da nova orientação do governo para os DOIs, que foram reestruturados para seguir uma linha mais de inteligência que de força -, o sargento passou a empregar a sua experiência nas operações clandestinas. Um dos seus principais contatos, na articulação com outros órgãos da repressão, era o coronel Freddie Perdigão Pereira, ex-DOI e na época agente, no Rio, do Serviço Nacional de Informações (SNI) - o grande órgão de inteligência do regime militar.
Frequentador do destacamento da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Perdigão tinha encontros periódicos com os agentes de operações especiais no bar Garota da Tijuca, a poucos metros da unidade, que ficou conhecida como o principal centro de torturas do Rio.
Da comunidade de informações, a caderneta de telefones de Guilherme do Rosário trazia, por exemplo, o nome de Wilson Pinna, agente da Polícia Federal aposentado. Entre 1979 e 1985, Pinna trabalhava no Dops, na coleta e análise de informações. Era um dos que, por exemplo, iam a assembleias, protestos, comícios e outras reuniões para ver quem dizia o quê. Pinna chegou a, por exemplo, coordenar a análise de informações do movimento operário da época.
Aposentado da PF em 2003, Wilson Pinna foi exonerado, em 2009, de cargo comissionado que ocupava na assessoria de inteligência da Agência Nacional de Petróleo (ANP), após ter sido acusado pela Polícia Federal como o autor do falso dossiê contra o então diretor do órgão, Victor de Souza Martins, irmão do então ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. Pinna foi denunciado na 2ª Vara Federal Criminal do Rio pelos crimes de interceptação telefônica ilegal e quebra de sigilo fiscal.
Wilson Pinna disse não se lembrar de ter conhecido Guilherme do Rosário, mas, segundo ele, podem ter se encontrado em algum dos cursos da área de inteligência feitos pelo agente federal, como aulas no DOI, no CIE e no Cenimar.
Na lista de contatos de Rosário, havia ainda um "Araujo" - cujo telefone pertencia, na época, a Marcelo Augusto de Moura Romeiro da Roza, já falecido. Trata-se de um coronel do Exército reformado fundador da Network Inteligência Corporativa, empresa do ramo de segurança e espionagem. Nos anos 90, Romeiro da Roza chegou a ter o nome envolvido no episódio do grampo do BNDES, em que foram registradas conversas sobre a privatização do sistema Telebrás do então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do presidente do banco, André Lara Resende.
Marcelo Romeiro da Roza foi sócio na Network com outro nome anotado por Rosário em sua caderneta: o coronel reformado do Exército Otelo José da Costa Ortiga. Na agenda do sargento, Ortiga é acompanhado pela anotação "(Luiz)". Pois o coronel Ortiga teria sido conhecido justamente pelo codinome Luiz em órgãos de inteligência como o CIE. Além da Network, o coronel Ortiga também foi sócio de outras empresas de inteligência, como a DFC e a Ciclone Proteção e Segurança.
Mas essa comunidade de informações vinda do meio militar-policial - e que hoje atua sob nomes diversos que vão de "serviços de vigilância" a "assessoria e consultoria em segurança" - já tinha seu embrião na época da distensão. A agenda de Rosário continha anotações que indicavam isso. Ao lado, por exemplo, do nome de José Paulo Boneschi - inspetor da Polícia Civil que chefiou o início do Grupo de Operações Especiais (Goesp) da Secretaria estadual de Segurança, e que consta como um dos principais torturadores da repressão -, havia a anotação "firma" e um telefone.
O número da "firma" era o da empresa de segurança Agents, na qual Boneschi trabalhou, pelo menos, até 1982. O dono da Agents, o comandante Francisco Gama Lima foi acusado de chefiar uma equipe de grampeadores de telefones para a qual trabalhava o técnico da Telerj Heráclito de Sousa Faffe, morto por uma injeção de veneno similar à que teriam aplicado no jornalista Alexandre von Baumgarten.
Gama Lima, que foi do Cenimar entre 1963 e 1967, chegou ainda a ser acusado de envolvimento na morte de Baumgarten. O coronel da reserva da PM Paulo César Amêndola, outro a constar na agenda de Guilherme do Rosário, também chegou a trabalhar na Agents.
A caderneta de Rosário traz ainda telefones do próprio SNI, de contatos do DOI do Rio e também do DOI de Belo Horizonte, e um contato que fez na Escola Nacional de Informações (EsNI) no ano mesmo em que morreria: o do então sargento da Aeronáutica José Pinheiro de Azevedo, que foi da turma de Guilherme do Rosário num curso sobre análise de informações feito em 81, meses antes do atentado no Riocentro.
A rede do sargento era formada, ainda, por outros sargentos paraquedistas, como Flávio Ribas e Laert de Azevedo, este tendo se formado na Brigada Paraquedista na mesma turma de Rosário.
Com a chegada da abertura política, os sargentos paraquedistas passaram a ser arregimentados como braços operacionais de integrantes da linha dura insatisfeitos com o ritmo da distensão. Um desses sargentos a constar da caderneta de Rosário era Magno Cantarino Motta, o "agente Guarani". Motta servia com Rosário na Subseção de Operações Especiais do DOI-I, e, no dia do atentado no Riocentro, ficou responsável por fazer a cobertura fotográfica do evento, de um posto de gasolina.
Como O GLOBO revelou neste domingo, o segundo inquérito aberto sobre o caso, em 1999, apontou a existência da agenda de telefones de Rosário. O GLOBO identificou metade dos 107 nomes anotados na agenda. Entre eles havia integrantes de cinco segmentos: o chamado Grupo Secreto, organização paramilitar de direita que desencadeou atos terroristas para deter a abertura política; nomes da Secretaria estadual de Segurança, incluindo do órgão responsável por investigar justamente os atentados a bomba da época; organizações civis, como empresas de construção e de material elétrico; veículos de comunicação; e militares que formariam depois a atual comunidade civil de informações e arapongagem.
A presença de alguns desses militares entre os contatos de um ativo participante de atividades terroristas de direita como Rosário mostra que, quando veio a distensão, esse grupo preencheu o vazio de poder utilizando, para fins civis, os conhecimentos de inteligência que tinham adquirido. Além disso, a agenda de Rosário traz indicações de que, já na época do fim do regime, essa comunidade de informações já começava a se articular.
Na lista, nomes do grampo do BNDES
Sargento paraquedista com 12 anos de experiência na guerra suja, Guilherme do Rosário pertencia, quando morreu, à Subseção de Operações Especiais, unidade de elite do DOI I, especializada em estouro de "aparelhos subversivos com o uso de força". Porém, à medida que as missões foram encolhendo - em decorrência do aniquilamento das organizações de esquerda da luta armada e da nova orientação do governo para os DOIs, que foram reestruturados para seguir uma linha mais de inteligência que de força -, o sargento passou a empregar a sua experiência nas operações clandestinas. Um dos seus principais contatos, na articulação com outros órgãos da repressão, era o coronel Freddie Perdigão Pereira, ex-DOI e na época agente, no Rio, do Serviço Nacional de Informações (SNI) - o grande órgão de inteligência do regime militar.
Frequentador do destacamento da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Perdigão tinha encontros periódicos com os agentes de operações especiais no bar Garota da Tijuca, a poucos metros da unidade, que ficou conhecida como o principal centro de torturas do Rio.
Da comunidade de informações, a caderneta de telefones de Guilherme do Rosário trazia, por exemplo, o nome de Wilson Pinna, agente da Polícia Federal aposentado. Entre 1979 e 1985, Pinna trabalhava no Dops, na coleta e análise de informações. Era um dos que, por exemplo, iam a assembleias, protestos, comícios e outras reuniões para ver quem dizia o quê. Pinna chegou a, por exemplo, coordenar a análise de informações do movimento operário da época.
Aposentado da PF em 2003, Wilson Pinna foi exonerado, em 2009, de cargo comissionado que ocupava na assessoria de inteligência da Agência Nacional de Petróleo (ANP), após ter sido acusado pela Polícia Federal como o autor do falso dossiê contra o então diretor do órgão, Victor de Souza Martins, irmão do então ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. Pinna foi denunciado na 2ª Vara Federal Criminal do Rio pelos crimes de interceptação telefônica ilegal e quebra de sigilo fiscal.
Wilson Pinna disse não se lembrar de ter conhecido Guilherme do Rosário, mas, segundo ele, podem ter se encontrado em algum dos cursos da área de inteligência feitos pelo agente federal, como aulas no DOI, no CIE e no Cenimar.
Na lista de contatos de Rosário, havia ainda um "Araujo" - cujo telefone pertencia, na época, a Marcelo Augusto de Moura Romeiro da Roza, já falecido. Trata-se de um coronel do Exército reformado fundador da Network Inteligência Corporativa, empresa do ramo de segurança e espionagem. Nos anos 90, Romeiro da Roza chegou a ter o nome envolvido no episódio do grampo do BNDES, em que foram registradas conversas sobre a privatização do sistema Telebrás do então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do presidente do banco, André Lara Resende.
Marcelo Romeiro da Roza foi sócio na Network com outro nome anotado por Rosário em sua caderneta: o coronel reformado do Exército Otelo José da Costa Ortiga. Na agenda do sargento, Ortiga é acompanhado pela anotação "(Luiz)". Pois o coronel Ortiga teria sido conhecido justamente pelo codinome Luiz em órgãos de inteligência como o CIE. Além da Network, o coronel Ortiga também foi sócio de outras empresas de inteligência, como a DFC e a Ciclone Proteção e Segurança.
Mas essa comunidade de informações vinda do meio militar-policial - e que hoje atua sob nomes diversos que vão de "serviços de vigilância" a "assessoria e consultoria em segurança" - já tinha seu embrião na época da distensão. A agenda de Rosário continha anotações que indicavam isso. Ao lado, por exemplo, do nome de José Paulo Boneschi - inspetor da Polícia Civil que chefiou o início do Grupo de Operações Especiais (Goesp) da Secretaria estadual de Segurança, e que consta como um dos principais torturadores da repressão -, havia a anotação "firma" e um telefone.
O número da "firma" era o da empresa de segurança Agents, na qual Boneschi trabalhou, pelo menos, até 1982. O dono da Agents, o comandante Francisco Gama Lima foi acusado de chefiar uma equipe de grampeadores de telefones para a qual trabalhava o técnico da Telerj Heráclito de Sousa Faffe, morto por uma injeção de veneno similar à que teriam aplicado no jornalista Alexandre von Baumgarten.
Gama Lima, que foi do Cenimar entre 1963 e 1967, chegou ainda a ser acusado de envolvimento na morte de Baumgarten. O coronel da reserva da PM Paulo César Amêndola, outro a constar na agenda de Guilherme do Rosário, também chegou a trabalhar na Agents.
A caderneta de Rosário traz ainda telefones do próprio SNI, de contatos do DOI do Rio e também do DOI de Belo Horizonte, e um contato que fez na Escola Nacional de Informações (EsNI) no ano mesmo em que morreria: o do então sargento da Aeronáutica José Pinheiro de Azevedo, que foi da turma de Guilherme do Rosário num curso sobre análise de informações feito em 81, meses antes do atentado no Riocentro.
A rede do sargento era formada, ainda, por outros sargentos paraquedistas, como Flávio Ribas e Laert de Azevedo, este tendo se formado na Brigada Paraquedista na mesma turma de Rosário.
Com a chegada da abertura política, os sargentos paraquedistas passaram a ser arregimentados como braços operacionais de integrantes da linha dura insatisfeitos com o ritmo da distensão. Um desses sargentos a constar da caderneta de Rosário era Magno Cantarino Motta, o "agente Guarani". Motta servia com Rosário na Subseção de Operações Especiais do DOI-I, e, no dia do atentado no Riocentro, ficou responsável por fazer a cobertura fotográfica do evento, de um posto de gasolina.
Por O Globo