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Um Rio de Janeiro marrom no caminho da Rio+20

Os líderes mundiais que vão desembarcar na cidade para a Rio+20 começarão sua temporada na cidade com uma viagem de cerca de 40 minutos entre o Aeroporto Internacional do Galeão e os hotéis da zona Sul da cidade. Para a centena de autoridades inscritas para discursar durante os três dias de conferência a partir de 13 de junho, os 25 quilômetros de trânsito lento que separam a Ilha do Governador dos bairros de Ipanema, Leblon e Copacabana serão uma aula de Rio de Janeiro – muito além dos cartões postais e da beleza carioca cantada e contada. O próprio desembarque das delegações obriga a um choque de realidade quando o assunto é a cidade-sede da Rio+20. A Baía de Guanabara ainda encanta, pois é único o cenário de mar e montanha onde se formou a cidade. Mas o espelho d’água, confundido com um rio pelos portugueses que desbravaram esse território no século XVI, é hoje um ponto de deságue dos problemas ambientais do Rio e dos 16 municípios que se formaram ao redor da Guanabara.
O Rio de Janeiro marrom, sufocado pela expansão desordenada da cidade, ao longo de séculos em que o meio ambiente foi tratado como algo inesgotável, é também síntese das metrópoles do Brasil e do mundo. Paulo Cesar Rosman, professor de engenharia oceânica da Coppe/UFRJ, enxerga na Baía de Guanabara as consequências dos desastres sociais e ambientais das cidades a seu redor. E alerta que tratar a questão sob o ponto de vista meramente ambiental não resolve o problema. "A poluição da Baía nada mais é do que o efeito colateral do que está no seu entorno. Uma população desamparada. Três ou quatro milhões vivendo com saneamento básico inexistente ou precário. Enquanto você tiver o grosso dessa população preocupada com sua sobrevivência, e sob pressão, a poluição da baía não estará resolvida", afirma.
A situação da Baía de Guanabara é um retrato do fracasso de parte das políticas voltadas para o meio ambiente no Brasil nas últimas décadas. Ao longo de 20 anos, 1,17 bilhão de reais foram investidos no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG). Mesmo assim, atualmente 10 mil litros de esgoto sem tratamento por segundo são lançados na Baía. O motivo: apesar do investimento em estações de tratamento, favelas e mesmo áreas urbanizadas da capital e de cidades ao entorno da baía não têm rede coletora de esgoto. Ou seja: os dejetos são lançados em rios e canais que arrastam para a Baía de Guanabara toda a poluição, enquanto unidades como a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Alegria, a maior das quatro construídas pelo programa, trata apenas 3 mil litros de esgoto por segundo, ou metade de sua capacidade.
Mesmo depois de tanto dinheiro investido, só 36% do esgoto produzido pelos municípios recebem tratamento. "Hoje o esgoto doméstico é o que mais contribui para a poluição na baía. Há 20 anos, o maior poluente era de origem industrial. Hoje em dia, as indústrias, de modo geral, estão tratando seus afluentes. Não só devido às medidas ambientais, mas porque elas têm um nome a zelar", explica a engenheira química Dora Hees de Negreiros, presidente do Instituto Baía de Guanabara.
No final de março, o governo do Estado anunciou o investimento de mais 1,1 bilhão de reais para a construção de redes de esgoto no entorno da baía, dos quais 800 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento e 330 milhões do governo estadual. Secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc admite que há um longo caminho para a cidade e o estado, quando o assunto é meio ambiente. "Concordo que o Rio seja um exemplo de desafio para o desenvolvimento sustentável. É inclusive essa síntese da beleza e do caos. É o grande desafio da secretaria atualmente. Mas demos um grande salto, com todos os programas e investimentos", avalia Minc, citando programas de monitoramento de praias e um plano para, mais uma vez, tentar fechar o depósito de lixo de Gramacho. A previsão do secretário é de que até o fim deste ano sejam fechados os lixões ao redor da baía. A providência não é simples: além dos depósitos oficiais, há os clandestinos, que o estado nunca conseguiu controlar.
A conferência de junho marca os 20 anos da ECO-92. Mas o nome Rio+20 sinaliza também o futuro que se quer desenhar para o planeta. Na histórica reunião que trouxe ao Rio líderes do mundo todo, o meio ambiente era o centro da questão. No evento de agora, o desenvolvimento social e a economia sustentável tornam mais complexo o debate.

O "lado B' do Rio - O caminho até a zona Sul do Rio obriga o visitante a ter contato com o que o cartão postal não mostra. A cidade do Pão de Açúcar, do Corcovado e de Copacabana tem 22% de sua população, ou 2,4 milhões de pessoas, vivendo em 743 favelas – ou aglomerados subnormais, na definição do IBGE. Ao longo da Linha Vermelha, a via expressa usada para conectar o centro da cidade com a Ilha do Governador e as cidades da Baixada Fluminense, os convidados da Rio+20 cruzarão o complexo de favelas da Maré. O conjunto de barracos de madeira e palafitas que começou a se formar em meados do século passado atualmente, é um conglomerado de 800 mil metros quadrados, com 130 mil moradores. É uma das grandes favelas ainda fora do programa de “pacificação” das favelas.
O roteiro das autoridades pela cidade inclui visitas a algumas das favelas hoje ocupadas por policiais, com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Na Maré, a realidade ainda é a de tiroteios que fecham a Linha Vermelha e obrigam motoristas a se abrigar dos disparos. As “barreiras acústicas”, instaladas para reduzir o ruído dos automóveis nas casas às margens da via expressa, são marcadas por perfurações de balas. E, mesmo encobrindo a visão para a favela, os viajantes têm, naquele trecho, a sensação de que não se está seguro.

Poluição do ar – Pela Linha Vermelha passam diariamente 139 mil veículos. Automóveis, caminhões e ônibus são os vilões da poluição do ar no Rio: 77% dos poluentes vêm dos canos de descarga, em uma cidade ainda completamente dependente do transporte rodoviário – única forma, por exemplo, de se chegar ao Aeroporto do Galeão. Uma faixa de ônibus exclusiva para ligar o terminal internacional à região central da cidade está sendo construída. O BRT (Bus Rapid Transit) batizado de Transcarioca terá 39 quilômetros de extensão e deve ficar pronto em dezembro de 2013. A expectativa é de que o tempo de viagem da Barra da Tijuca, na zona oeste, ao Galeão seja reduzido em 60%, passando de duas horas para perto de 50 minutos.
Criar alternativas aos combustíveis fósseis é uma missão difícil nas cidades brasileiras. O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) indica que, no início de 2012, o país tinha 70.965.139 veículos registrados para circular. No Rio, em 2011 havia 1.861.198 veículos automotores. Com a configuração atual de vias urbanas, o Rio tem trânsito caótico. E os motoristas andam permanentemente com o pé no freio. Dados da Secretaria Estadual de Transportes mostram que a velocidade média do tráfego nas principais vias do Rio, em 2011, era de 20 km/h para os carros e e 17 km/h, para os ônibus. Mantida a tendência de aumento da frota e redução da velocidade, em 10 anos o trânsito do Rio vai ficar com velocidade média semelhante a de quando as pessoas se locomoviam com carroças: 16 km/h para carros, e 15 km/h para ônibus.
Professor de engenharia de transportes da Coppe/UFRJ, Paulo Cezar Ribeiro coordenou em 2011 um estudo que prevê o dobro de veículos no Rio até 2020: a frota da cidade saltaria para perto de 3,6 milhões de unidades. "A cidade vai ficar vez mais congestionada em lugares que não apresentavam esse problema. A Linha Vermelha sempre foi uma via expressa de tráfego intenso. A situação se agrava mais porque vai ficar congestionada em lugares e em horários em que não costumava ficar, como já ocorre na zona sul", adverte.
O panorama atual do trânsito já é ruim. O tráfego adicional da Rio+20 é uma preocupação para a prefeitura, que avalia, no momento, a antecipação das férias da rede municipal de ensino. Além da mudança de cronograma, os gestores locais consideram a possibilidade de decretar feriado nos dias 20, 21 e 22 de junho. Tudo para evitar que a conferência prejudique a rotina da cidade. E, claro, que os chefes de estado fiquem engarrafados entre um e outro compromisso.

Zona Sul – Na viagem entre o Galeão e os hotéis da zona sul, só ao fim do Túnel Rebouças ou a partir do Aterro do Flamengo os convidados da Rio+20 começarão a ter contato com as imagens do Rio que correm o mundo. A porção mais nobre da cidade também luta para reverter os efeitos da poluição. A Lagoa Rodrigo de Freitas passa por um programa que prevê a despoluição até 2014. Isso significa trazer o nível de coliformes fecais de 16 mil para cada 100 mililitros de água, encontrado em 2004, para perto de mil, para o mesmo volume. Atualmente, a Lagoa para próximo de 2.400 coliformes por 100 mililitros. Para isso foi instalado o Centro de Controle Operacional de Esgotos, que ajuda a monitorar os afluentes. O programa é patrocinado pela EBX, do empresário Eike Batista.
Já houve avanços. Apesar da persistência de ligações irregulares de esgoto, que levam para a lagoa o que deveria correr para a rede de saneamento, de acordo com o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), os níveis atuais possibilitam a prática de esportes de remo e vela, mas ainda não apresentam condições para banho. Uma fase complementar do projeto de despoluição ainda está na fase de licitação.
A última parada do caminho da Rio+20 são as praias de Ipanema e Leblon, cartões postais que também têm a deficiência do sistema de saneamento como um problema a ser resolvido. Durante metade do ano em 2011, segundo o Inea, a praia do Leblon ficou imprópria para o banho, principalmente devido ao alto nível de coliformes fecais oriundos das águas do Canal da Rua Visconde de Albuquerque, que traz parte do esgoto da favela da Rocinha e do Parque da Cidade. A praia de Ipanema ficou imprópria 40% dos dias de 2011. A promessa de melhoria, nesse caso, também tem 2014, ano da Copa do Mundo, como prazo para despoluição. Um programa orçado em 150 milhões de reais vai levar o esgoto para alto mar, pelo emissário submarino de Ipanema.
O ano de realização da Copa do Mundo no Brasil passou a ser o prazo final para uma série de projetos. A Rio+20 ocorre a meio caminho da data-limite para que o Rio e o Brasil alcancem um patamar de qualidade aceito internacionalmente em infraestrutura, transportes e, claro, meio ambiente. As promessas incluem também o principal portão de entrada e saída de estrangeiros, o Aeroporto Internacional do Galeão, que foi chamado pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, de "vergonha da cidade" e "anticartão postal". As críticas do governador dizem respeito à falta de conforto e às deficiências dos terminais propriamente ditos, que têm problemas do estacionamento até as esteiras de bagagem, em uma estrutura que opera com 85% de sua capacidade – quando o máximo tolerável seria de 80%.
O Galeão também sofre com o que está além dos limites do aeroporto. A apenas sete quilômetros das pistas fica o aterro de Jardim Gramacho, o maior lixão a céu aberto da América Latina. Os detritos que se acumulam atraem urubus, que põem em risco os pousos e decolagens. De acordo com a Infraero, em 2009 houve 94 incidentes envolvendo aeronaves e aves. Já houve sucessivas promessas de fechamento do lixão, mas o ponto final nos despejos que ajudam a poluir com chorume os rios da região e a Baía de Guanabara sempre foi adiado. A nova promessa da secretaria do Ambiente é de que no próximo Dia Mundial do Ambiente, 5 de junho, os caminhões com restos de toda a população da capital e de municípios da Baixada Fluminense tenham novo destino. Para o Rio, se a data comemorativa e a pressão internacional da Rio+20 conseguirem essa vitória, a conferência já terá valido a pena.

Por Veja